quarta-feira, 12 de maio de 2010

Humberto

- Alguém aqui o conhecia? - pergunta o delegado depois de examinar o magro cadáver esticado entre tambores de lixo.
Silêncio...
- Vamos, pessoal! Nome? Idade? Familiares!? Será possível que ninguém aqui sabe nada a respeito dessa pobre criatura?
Quando está prestes a se irritar com a multidão que se aglomera, trânsito que vai ficando cada vez mais lento e o silêncio das bocas famintas dos moradores de rua, o homem grave ouve uma voz rouca quase que por cima de seu ombro:
- Humberto.
- Hein!? - Vira-se para ouvir melhor ao mesmo tempo em que passa pela cabeça que logo logo estará usando aparelho de surdez, feito seu velho pai.
- O nome dele era Humberto, tadinho! - Repete a dona daquela voz quase sumida no ruído da cidade, uma senhorinha maltrapilha com somente um dente inferior, vestida em trapinhos imundos.
- Humberto de quê?
- Ah, isso eu num sei não, dotô! Até teve um dia, logo anssim que ele chegou aqui, que me mostrou os dicumentu... Mas eu num sei lê, né...
- Bom, então temos uma pista. Ele tem documentos. Onde é que ficam guardados? Nos bolsos não tem nada...
Enquanto diz isso, o delegado meneia a cabeça em sinal a um dos investigadores que o acompanham, como que ordenando que vasculhasse a área.
- Tem mais dicumento não, dotô! - retorna a velhinha. Tem mais de ano que os nóia cataram as coisas dele. É só a ropinha do corpo, mesmo. Que nem nóis tudo aqui.
- Que droga!
- Só uns fuminho...nada além disso, dotô. Crack, mesmo, ele nunca quis porvá!
O delegado se volta para a velhinha desdentada, começando a bater os braços para esbravejar algo, mas desiste diante de tão decrépita figura.
- Faz muito tempo que ele vivia aqui?
- Tem pra mais de ano e meio, dotô.
- A senhora conversava muito com ele? Sabe se ele tinha família? Amigos?
- Ué... ele sempre falou que a mãe dele era viva, que chamava... Rosa e que tinha casa e tudo... Mas nunca apareceu ninguém aqui.
- Rosa... Humberto... Vai marcando aí, Macedo.
Macedo, um investigador esguio, óculos na ponta do nariz, empunha um bloquinho de anotações na mão esquerda. Com a mão direita saca da orelha uma esferográfica e, com uma expressão absolutamente descrente, começa a anotar as informaçoes de mais um das dezenas de cadáveres que ele está acostumado a fotografar e catalogar todos os meses.

Nome: Humberto...?
Idade: + ou - 23
Mãe: Rosa...?
Residência: Morador de rua.

- Ele tinha alguma companheira? Pergunta do investigador.
- Só aquela ali, ó. Afirma a velhinha, enquanto aponta uma cadelinha magrela sentada próxima ao corpo.
- Bem... acho que ela não vai ajudar muito...

Estado civil: solteiro.
Causa da morte: cinco tiros, sendo dois na cabeça, um no abdômem e dois no braço direito.
Local do crime: Praça da Paz, s/n.
Quando escreve "Praça da Paz", o investigador pára, olha para a pracinha toda salpicada de lixo, com gramado suplicando água e uma meia dúzia de bancos de cimento quebrados. Meneia a cabeça e sussurra um "tsic".
O delegado, agachado, examina mais detalhadamente o cadáver e pensa em silêncio:
"Esse rosto... estranho... não é um rosto de morador de rua. Os traços são muito delicados."
Aproxima-se, então um jovem em trajes tão maltrapilhos quanto os dos demais moradores de rua ali presentes. Ao ver o corpo magro caído de bruçus, ele imediatamente reconhece a vítima e derrama lágrimas silenciosas.
- Meu Deus! Tadinho do Beto! Quem foi que fez isso, doutor? Pelo amor de Deus, me diga: quem foi que fez essa barbaridade?
- Estamos tentando descobrir, meu filho... estamos tentando. - diz o delegado, despertado de suas indagações pela voz chorosa do jovem.
- Ele era um coitado, doutor! Nunca fez mal a ninguém. Vivia ajudando a gente aqui.
- Você o conhecia bem? O que sabe sobre ele?
- Bom, eu chamava ele de Beto. Mas o nome dele era Humberto...Arantes, se não me engano. Fazia pouco mais de um ano e meio que ele veio pra cá. A gente ficou muito amigo.
- E ele falava da família? Pai, mãe...? Tinha algum endereço?
- Ele disse que morava no Morumbi, que a família era bem de vida. Depois que o pai morreu, a coisa desandou, apareceram outros herdeiros. A mãe dele, uma tal de dona Rosa, descobriu que o marido sempre teve outra família e parece que pirou. Acabou internada em sanatório. Parece que os irmãos bastardos tomaram conta da empresa do pai dele e botaram ele pra correr. Ele perambulou por vários viadutos de São Paulo até vir parar aqui. Depois que veio pra cá, a história é igualzinha à de qualquer um de nós: vieram as drogas, um assaltozinho aqui, outro ali pra se sustentar e comprar um baseado...
Delegado e investigador ouvem atentamente o relato do amigo que chora.
- Aí, o senhor sabe como é, né... A gente acaba arranjando uma treta aqui, uma treta ali... Mais cedo ou mais tarde acaba assim.
- E com quem é que o nosso amigo tinha treta?
- .....
- P...Q...P...!!! Esbraveja o delegado, suado, cansado, olhando todos os maltrapilhos à sua volta saírem cabisbaixos. Ninguém vai me dar uma pista!?
Segura então o braço do jovem depoente, tentando impedí-lo de seguir os demais.
- Quem é que fez essa cagada aqui!? Quem tinha motivos pra matar um moleque que só ajudava os outros e fumava um baseadinho de vez em quando!!?
- Sei não, doutor, sei não.
O delegado solta o braço do rapaz, que sai devagarinho com o rosto banhado em lágrimas.
Em poucos instantes a cena do crime só tem o cadáver, o delegado e três investigadores. Os moradores de rua se foram, os transeuntes vão e vem na sua rotina invisível.
O cinza desgastado da viatura se confunde com o concreto armado de uma construção que se ergue atrás da praça.
Aproxima-se a sirene trêmula de uma funerária. Ela encosta bem próxima ao cadáver de Humberto. Descem dois homens com luvas nas mãos. Eles olham em silêncio para o delegado por alguns segundos.
O homem da lei sussurra, enquanto enxuga o suor da testa:
- Pode recolher. É indigente.
- Mas, doutor, ele foi assassinado e...
- É indigente, eu já disse.
O delegado entra na viatura acompanhado de seus investigadores e saem em disparada, de volta ao plantão policial.
Longe dali, num hospital psiquiátrico, uma jovem senhora passa por um interrogatório médico:
- Sim, eu tenho um filho. Ele é lindo e vai ser médico um dia, assim como o senhor! Ele se chama Humberto! Já imaginou? Doutor Humberto Arantes!!!

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