quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O Espiritismo e o Demônio

Anteontem, minha mãe veio me narrar uma conversa que teve com uma amiga. O tema, religião. Numa curta definição, a sua interlocutora, católica fervorosíssima, conceituou: “Espiritismo é coisa do demônio!”.

Sabedora de meu extremo interesse por assuntos religiosos, narrou-me todo o diálogo que travou com a inquisidora de Kardec com o habitual interesse de captar cada mínima reação minha. Afinal, não é qualquer mãe que tem o privilégio de ter em casa um ex-frade franciscano, antes candidato à carreira eclesiástica agora convertido em kardecista convicto e atuante.

Diga-se de passagem, que é uma praxe nos ambientes onde convivo. Sempre que surge o tema religioso, seja para elogiar ou depreciar esta ou aquela seita ou doutrina, imediatamente os olhos em derredor se voltam para mim, buscando-me como uma referência de conceito. Devo confessar que isso me afaga um pouco o ego, fazendo-me sentir uma espécie de formador de opinião.

Diante da narrativa de minha mãe, calei-me, contido. Para seu descontentamento, infelizmente. Afinal, as pessoas sempre esperam ver um homem reagir revoltado quando se ataca veementemente a sua crença. Minha velha mãezinha não foge à regra.

Hoje, três dias depois de ela ter me contado o episódio, depois de ter refletido um pouco, achei interessante postar um texto a respeito.

Lembro-me, agora, de um outro comentário, também de uma amiga da mamãe – esta, Testemunha de Jeová -, dentro de nossa casa. Ela teria dito, segundo a narrativa da mamãe: “Espírita não serve pra conviver comigo!”. A memória de minha reação interior de então, me faz crer que evoluí no sentido de ouvir disparates. Naquela circunstância, assim que minha mãe contou-me o fato, minha primeira reação, silenciosa foi a de pensar: “Pena eu não estar por perto pra dizer: ‘Ora, Dona Inácia, como a senhora sabe, sou espírita. E de modo algum quero que se sinta obrigada ao desprazer de suportar a minha presença tão indesejável. De modo que, como eu moro aqui, seria justo que a senhora saísse. Afinal, como diz o velho ditado, a porta da rua é serventia da casa’.” Claro que esse pensamento foi um relâmpago na minha mente, pois a educação que meus pais me deram e o respeito que nutro pelos mais velhos e pelos que têm outra crença jamais me permitiria tal ousadia.

Voltemos à frase do início do texto: “Espiritismo é coisa do demônio!”. Considero essa uma frase clássica, hoje em dia. Sim, é um dos chavões mais usados para conceituar a doutrina dos espíritos, codificada por Hippolyte Léon Denizard Rivail, o nosso Allan Kardec.

Há tanto o que se comentar a respeito disso, que perco-me na organização da argumentação. Apenas vou começar explicando porque não retruquei nem revoltei-me. Simples: essa frase clássica de atribuir às artimanhas do “tinhoso” toda a doutrina dos espíritos, e toda a obra de amor e caridade que delas têm brotado desde 1857, normalmente sai da boca dos ignorantes. E não estou usando a palavra “ignorantes” na conotação vulgar que se usa por aí, querendo desclassificar pejorativamente o indivíduo.

Quando digo que esse conceito é típico dos ignorantes, estou me referindo àqueles que falam sem conhecimento de causa, que de fato ignoram o que estão julgando, por jamais terem lido uma linha sequer das obras da codificação ou que nunca botaram os pés numa casa espírita para testemunhar a imensa obra de amor evangélico que move a engrenagem espiritista. A mesma ignorância de que poderiam me acusar se eu fosse aqui falar contra os transgênicos ou as pesquisas com células-tronco, sem jamais ter me aprofundado sobre qualquer um desses assuntos. Pelo menos não mais que a leitura de alguns artigos de revistas e jornais ou algum conteúdo de internet.

Falar sem conhecimento absoluto de causa, por si só já desclassifica a opinião. Não dá margem nem ao debate.

Claro que também temos oportunidade de discutir seriamente a doutrina com pessoas que buscaram conhecê-la, pesquisaram-na e a mesmo assim não a reconhecem como legítima. Esse tipo de debate é muito interessante e enriquecedor, porque nos inquieta e nos desafia. E sobretudo nos faz ter a humildade de saber que nem todos pensam como nós e nem por isso são condenáveis. Apenas enxergam a vida sob um prisma diferente e para elas não se aplica como verdade aquilo que para nós é razoável.

Ainda voltando ao argumento da amiga da minha mãe, creio que valha a pena explorar um pouco o tema.

Existem construções filosóficas e teológicas bastante extensas e complexas acerca do demônio, diabo, capeta, satã ou como queiram denominá-lo. Há inclusive, doutrinas divergentes sobre a figura satânica que aterroriza o mundo e rivaliza com Deus desde os primórdios. Não vou explorá-las aqui, tampouco discorrer longamente sobre cada uma delas, posto que isso não é um tratado, mas um artigo para reflexão menos elaborado.

Parece-me que a doutrina mais defendida entre as doutrinas cristãs – inclusive a Igreja Católica – é aquela segundo a qual o demônio teria sido criado por Deus na condição de um anjo.

Aqui cabe um parênteses para dizer que, para a Igreja, os anjos são seres criados à parte, nem deuses nem humanos, que intermediam as relações entre a divindade e a humanidade.

Segundo a doutrina vulgarmente conhecida como a “doutrina do anjo decaído”, não obstante Lúcifer gozasse de uma proximidade extraordinária com Deus, em determinado momento teria se rebelado contra Ele, por inveja, e se transformado numa criatura para sempre devotada ao mal. Um ser que vive peremptoriamente uma queda de braço com Deus. Nessa luta, o troféu é a alma do homem. Ou seja, as almas dos homens desde o início da existência da humanidade, onde estava satã na figura da serpente, prontinho para seduzir imediatamente o primeiro casal humano a habitar a Terra.

Concebe-se então que o demônio tenha um território circunscrito, a que as religiões denominam inferno, para onde ele arrasta - depois da morte - as almas dos homens e mulheres que seduziu em vida. Nesse lugar esses humanos vão sofrer suplícios eternamente, como forma de punição pelos pecados que tenham cometido na Terra. A definição desses suplícios tem sido objeto da especulação humana desde muitos séculos atrás. Imagina-se mil formas e ferramentas sem fim que o capeta use para torturar as almas pecadoras. Há inclusive extenso anedotário a respeito. A mais comum e que se leva mais a sério, parece ser a idéia de um caldeirão de água – ou algum outro líquido – fervente, onde o príncipe das trevas fica cozinhando suas vítimas.

É óbvio que, dada a negativa da Igreja em reconhecer a reencarnação, o volume de almas que Deus cria incessantemente é gigantesco. Ou seja, supondo mesmo que uma parte pequena dessas almas acabe no inferno após a morte física, há que se contar com muitos caldeirões e uma quantidade razoável de demônios para ficar eternamente dedicada ao serviço de cozinhar essas almas. Também para isso a Igreja tem sua teoria: diz que Lúcifer não se retirou sozinho da presença de Deus, quando foi fundar o inferno, mas que teria levado uma horda substancialmente numerosa consigo. São seus asseclas. Impressiona é que, tendo se revoltado contra a Suma Bondade de Deus, esses demônios não tenham jamais se revoltado contra o seu líder em momento algum. Ou seja, revoltaram-se contra o banquete dos céus, mas aceitam as condições horrendas do inferno sem murmurar contra um líder perverso que os obriga ao trabalho sujo por toda a eternidade.

Essa definição do demônio provoca algumas reflexões:

A primeira delas diz respeito o retrocesso de um ser. Admitirmos que alguém que goza do mais alto escalão na hierarquia dos seres, alguém que atinge a ventura máxima de conviver face a face com o Criador possa sentir-se tentado a retroceder e abraçar o mal de modo tão definitivo é aterrador. Se um anjo não conseguiu viver sem cogitar o mal tendo sido criado como anjo e estando convivendo com Deus, quais são as esperanças de almas tão falhas quanto as nossas que sequer temos a investidura de anjos? Poderemos ainda ter a ilusão de que conseguiremos viver com Deus por toda a eternidade, se a cada milésimo de segundo uma idéia minimamente impura nos irrompe o pensamento e nos tira do prumo?

Lembro-me aqui de algumas das figuras mais ilustres da própria Igreja, que nos servem de modelos, elevados à categoria de Santos pelos imensos esforços de caridade a que se entregaram, pelas mortificações a que muitos deles se submeteram. Em muitas dessas biografias constam relatos de terríveis crises de fé, de árduas lutas para se manterem fiéis à inspiração divina.

Francisco de Assis, um dos maiores ícones da religiosidade da Igreja, já no leito de morte, disse aos seus seguidores: irmãos, é preciso começarmos, porque até agora pouco ou nada fizemos.

Se um anjo, na presença de Deus, digamos, não “se garantiu”, que luta inglória se revela essa.

Está perfeitamente claro que a doutrina de um Lúcifer decaído, que se tenha transformado no príncipe das trevas é errônea.

Assim como é loucura crer que possa haver um ser eternamente devotado ao mal, meticulosamente dedicado a se contrapor a Deus. Assim como é insano imaginar um Deus que gaste as suas energias e seu tempo “disputando” almas com essa criatura. Almas que Ele criou com um amor incomensurável e indizível e que Ele jamais entregaria à perdição, fossem quais fossem os seus delitos.

Nós somos de Deus, a Ele pertencemos e Sua misericórdia para com nossos delitos é infinitamente maior que todo o raciocínio que possamos esquadrinhar. Ele não nos criou para a perdição, mas para o progresso contínuo, somos fadados à perfeição e não há nada no Universo que desconstrua essa verdade. Ele nos concede sempre um novo dia e uma nova existência para abandonarmos os nossos maus hábitos e caminharmos em direção à Sua Luz.

Por fim, seguindo a lógica da amiga da minha mãe, nos veríamos obrigados a imaginar um demônio que, não bastasse as suas ocupações em recolher e punir as almas renegadas, se dedicasse a elaborar uma obra tão extensa e coesa no bem quanto a doutrina espírita, criando-a em suas mais profundas verdades sobre a caridade e a fé. E ainda conduzindo uma obra de tamanho vulto, que em inúmeras partes do planeta ocupa milhões de espíritos desencarnados. Todos, estariam sob a sua direção, sendo orientados há mais de cento e cinqüenta anos a pregar falsamente o amor, a paz e as virtudes entre os homens.

Definitivamente, creio firmemente que o Espiritismo, assim como as inúmeras, religiões não seja obra de nenhum demônio.

sábado, 2 de outubro de 2010

Infância

Quando criança, morava com meus pais e meus irmãos numa casa muito antiga, na fazenda de meu avô.

A velha tapera fora testemunha do nascimento de minha avó paterna. É o que se conta ainda hoje.

Eu amava aquele lugar, que para mim parecia gigante - como, aliás, tudo nos parece gigante quando somos crianças. Gigante também era o nome da variedade de bambus que margeava o córrego mansinho que corria no fundo do quintal. E eu tinha um medo danado das moitas de bambu gigante, sobretudo quando um vento forte as sacudia, provocando estalos dos mais variados tipos. Quase sempre antes de uma chuva torrencial chegar lavando tudo. Sim, na minha infância todas as chuvas pareciam ser torrenciais.

Mais acima, mantendo a velha tapera distante dos amedrontadores bambus, haviam três imponentes jabuticabeiras-do-mato, daquelas que dão frutas enormes e custosas de amadurecer. Na realidade, mesmo quando maduras as frutas daquelas árvores pareciam embotar a boca da gente, de modo que, a minha mente infantil, afora e a sombra que aquelas jabuticabeiras proporcionavam pra gente brincar, nenhuma serventia para elas encontrava.

Impressão semelhante guardo até hoje da laranjeira que impunha-se entre as tais jabuticabeiras e a velha casa. Minha mãe ensinou-nos que era laranja-de-fazer-doce, por isso não comíamos os seus frutos. Entretanto, a menos que minha memória esteja me ludibriando, não me lembro jamais de comer doce daquelas laranjas de casca grossa e áspera.

Deliciosas mesmo eram as laranjas que produzia o pé de laranja que o meu pai chama de Ribeiroa. Essas, além da polpa saborosíssima com que seus gomos nos agraciavam, era a mais acessível das frutíferas, porque seus galhos pendiam bem encostadinhos na varanda dos fundos. Quando bem carregada, até a nós crianças era muito fácil alcançar as laranjas amarelinhas, simplesmente subindo na mureta.

O quintal zelosamente cuidado pelo meu pai, ainda contava com goiabeiras, um enorme abacateiro, amoreira, várias jabuticabeiras menores (ou comuns, como a gente dizia), bananeiras de diversas variedades, pessegueiro, um pé de limão-china, um pé de romã, uma abundante parreira de chuchu etc. Sem falar na grande e variada horta.

Meu irmão e eu muito cedo fomos para a lida na lavoura de café e nas - assim chamadas - culturas anuais de milho e arroz. Assim que ganhamos matrícula na escola, cada qual ganhou também sua enxadinha pra aprender a cuidar da terra. Bem de manhãzinha nos levantávamos e partíamos para a escolinha primária, que ficava na Fazenda Aleluia, também acompanhados pela minha irmã, nos primeiros anos, antes que ela se mudasse para a casa da madrinha na cidade para cursar o ginásio. Além de nós três, havia outras crianças que nos acompanhavam no trajeto de pouco mais de quatro quilômetros de estradinha de terra até a escolinha. Umas eram filhas dos empregados da fazenda do vovô e outras, filhas de sitiantes e fazendeiros vizinhos.

A rotina era rigorosa para nós. Depois que voltávamos da aula ministrada pela dona Neuza Eleutério e pelo “Seu” Raul Teixeira Lopes, rapidamente almoçávamos e trocávamos os trajes de alunos por roupinhas mais simples e um par de botinas. Logo éramos vistos caminhando para o trabalho na lavoura, onde ficávamos ajudando o papai até que o sol ameaçasse se por no horizonte.

De volta em casa, já de noitinha, o tempo era dedicado à lição de casa.

Após o jantar que a mamãe preparava no velho fogão a lenha, meu irmão e eu ainda encontrávamos energia para brincar um pouco à luz de lampião. Com o tempo, nossa casa ganhou o benefício da energia elétrica. E com ela, veio a TV, aquele monstrengo de botões engraçados e imagem preta e branca que fazia a sala da velha casa azular depois da janta, prendendo a atenção do papai e a mamãe, fosse ao telejornal ou nas novelas.

Como dormíamos cedo naquela época! Íamos pra cama bem antes do horário em que hoje a moçada sai pra balada.

Entretanto, como já naquela época eu tinha bem pouco sono, adorava contemplar a noite estrelada. Gostava de abrir a janela e ficar ouvindo aqueles ruídos típicos da noite no campo. Grilos, sapos... A noite no campo tinha sons mágicos. E o céu, sempre lindo.

Mas tinha algo que me tomava os pensamentos de maneira incomum. Da janela do quarto era possível avistar ao longe os carros que passavam pela rodovia. Rodovia da qual hoje sei o nome, sei a quais cidades conduz etc. Mas que naquela época dourada era uma completa incógnita pra mim.

Lembro-me apenas de ficar contemplando os faróis e que iam e vinham e deixar a minha imaginação voar. Perdia-me em questões como: Quem estará dentro daquele carro? Como e onde vive? Quais são seus sonhos, seus gostos, suas alegrias e tristezas? Será uma pessoa feliz? Para onde estará indo? Movido por quais razões corta a rodovia a essa hora da noite? Será um homem, um pai de família? Terá filhos? Uma esposa? Ou será toda uma família viajando feliz para algum passeio agradável? Será que viajam cantando, ou conversando sobre algum assunto de família?

Eu podia passar horas tecendo conjecturas a respeito daquelas pessoas que para mim não passavam de anônimos. Pessoas que jamais imaginariam que a quilômetros da rodovia um menino estivesse pendurado na janela velha de uma tapera contemplando a noite e observando o movimento dos carros na pista. Pessoas que viveram cinqüenta, setenta anos, morreram e nunca souberam da minha existência. Pessoas das quais eu jamais verei os rostos ou ouvirei as vozes, ainda que eu viva cinqüenta ou setenta anos.

Ainda hoje, guardo em mim questionamentos semelhantes ao daquele menino da fazenda.

Andando pela cidade, esbarrando com um sem número de pessoas, cada uma com sua urgência, cada uma com seus milhares de motivos para não se relacionarem comigo, às vezes fico a pensar quem são, como vivem, o que pensam e sentem circulando anônimos pela cidade, tão mais próximos de mim que os passageiros dos carros na rodovia da minha infância.

Muitos deles cruzam comigo nas calçadas ou nas ruas inúmeras vezes. No entanto eu nunca soube seus nomes, seus sonhos, suas tristezas ou alegrias, seu time do coração...

Tampouco eles sabem de mim, que eu sou um menino crescido na roça, contemplando carpindo mato e contemplando estrelas. Um menino com medo do bambu gigante, que nunca mais provou uma laranja ribeiroa.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Rodovia

Carros que vão,
carros que vêm
transportando gente.

Gente à margem.
Gente que vai.
Gente que vem.
Cada vez menos sola no sapato.
Sempre mais sonhos na cabeça.

Carros vão e vêm,
gente vai e vem.
Ninguém sabe ao certo
o destino de ninguém.
Nem quer saber.