sábado, 14 de outubro de 2017

Itinerário

Eu hoje fugi de casa, em meio à ventania.
O vento desalinhou meus cabelos lisos,
mas eu botei minha boina por cima
da bagunça da minha cabeça.

O sol fez arder meus olhos
e eu botei meus óculos escuros
para esconder sua irritação.

Vim escrever no meio do pasto.
Aqui, ao menos, há vida.
Há a vida velada no estrume que, pouco a pouco,
vira adubo e nutre a erva.

Faz tempo que saí daqui,
peito estufado, cabeça erguida,
certo de que o mundo estava doente
e que eu podia salvá-lo.

Hoje volto enfermo
de um mal que parece incurável.

Quando o médico era eu,
Passei algumas vezes por estes campos
sem atinar de olhar para o pasto.
Mas cuspi nele pela janela do carro.

Sequer olhei pelo retrovisor
no intuito de ver onde se assentava a poeira fina
que se erguia à minha rápida passagem.
Mas tenho certeza de que pousava sobre a pastagem.

Na verdade, naquele tempo eu
já havia fugido de casa.
Só não conhecia bem a força do vento.
E o sol parecia não arder tanto aos olhos.

Na fuga percorri muitos lugares.
Cruzei ruas e avenidas imensas.
Deparei-me com diversos olhares
e ouvi centenas de vozes que, eu sei,
permanecem dentro de mim, gravadas.

Vi corpos sensuais em gestos lascivos
na voluptuosidade das cidades em que perambulei.
Inúmeras vezes, fiquei insone à noite.
E o vento finalmente começou a incomodar,
bagunçando-me a cabeça e os cabelos.

E eu pequei.
desgraçadamente, pequei de forma incompleta, porque o fiz só.
Se ao menos eu tivesse pecado por inteiro...
Se tivesse pecado muito bem acompanhado, haveria um quê de prazer.
E o remorso seria menos doloroso.

O inferno seria mais brando,
esta secura teria, aqui e acolá, gotas de esperança.
Eu agora veria essa pastagem com outros olhos
e o vento e o sol não castigariam tanto.
Talvez eu nem fugisse mais de casa.

Mas o pecado se multiplica no mundo
graças a homens como eu,
que se julgam santos demais e que, ao tropeçarem,
deixam à mostra toda a sua hipocrisia.

Meu epitáfio seja:
“Aqui jaz um desgraçado
que um dia fugiu de casa
e perdeu-se na ventania”.

E rezem os que ainda me amarem
afim de que eu me torne
ao menos um montinho de estrume.