sábado, 2 de outubro de 2010

Infância

Quando criança, morava com meus pais e meus irmãos numa casa muito antiga, na fazenda de meu avô.

A velha tapera fora testemunha do nascimento de minha avó paterna. É o que se conta ainda hoje.

Eu amava aquele lugar, que para mim parecia gigante - como, aliás, tudo nos parece gigante quando somos crianças. Gigante também era o nome da variedade de bambus que margeava o córrego mansinho que corria no fundo do quintal. E eu tinha um medo danado das moitas de bambu gigante, sobretudo quando um vento forte as sacudia, provocando estalos dos mais variados tipos. Quase sempre antes de uma chuva torrencial chegar lavando tudo. Sim, na minha infância todas as chuvas pareciam ser torrenciais.

Mais acima, mantendo a velha tapera distante dos amedrontadores bambus, haviam três imponentes jabuticabeiras-do-mato, daquelas que dão frutas enormes e custosas de amadurecer. Na realidade, mesmo quando maduras as frutas daquelas árvores pareciam embotar a boca da gente, de modo que, a minha mente infantil, afora e a sombra que aquelas jabuticabeiras proporcionavam pra gente brincar, nenhuma serventia para elas encontrava.

Impressão semelhante guardo até hoje da laranjeira que impunha-se entre as tais jabuticabeiras e a velha casa. Minha mãe ensinou-nos que era laranja-de-fazer-doce, por isso não comíamos os seus frutos. Entretanto, a menos que minha memória esteja me ludibriando, não me lembro jamais de comer doce daquelas laranjas de casca grossa e áspera.

Deliciosas mesmo eram as laranjas que produzia o pé de laranja que o meu pai chama de Ribeiroa. Essas, além da polpa saborosíssima com que seus gomos nos agraciavam, era a mais acessível das frutíferas, porque seus galhos pendiam bem encostadinhos na varanda dos fundos. Quando bem carregada, até a nós crianças era muito fácil alcançar as laranjas amarelinhas, simplesmente subindo na mureta.

O quintal zelosamente cuidado pelo meu pai, ainda contava com goiabeiras, um enorme abacateiro, amoreira, várias jabuticabeiras menores (ou comuns, como a gente dizia), bananeiras de diversas variedades, pessegueiro, um pé de limão-china, um pé de romã, uma abundante parreira de chuchu etc. Sem falar na grande e variada horta.

Meu irmão e eu muito cedo fomos para a lida na lavoura de café e nas - assim chamadas - culturas anuais de milho e arroz. Assim que ganhamos matrícula na escola, cada qual ganhou também sua enxadinha pra aprender a cuidar da terra. Bem de manhãzinha nos levantávamos e partíamos para a escolinha primária, que ficava na Fazenda Aleluia, também acompanhados pela minha irmã, nos primeiros anos, antes que ela se mudasse para a casa da madrinha na cidade para cursar o ginásio. Além de nós três, havia outras crianças que nos acompanhavam no trajeto de pouco mais de quatro quilômetros de estradinha de terra até a escolinha. Umas eram filhas dos empregados da fazenda do vovô e outras, filhas de sitiantes e fazendeiros vizinhos.

A rotina era rigorosa para nós. Depois que voltávamos da aula ministrada pela dona Neuza Eleutério e pelo “Seu” Raul Teixeira Lopes, rapidamente almoçávamos e trocávamos os trajes de alunos por roupinhas mais simples e um par de botinas. Logo éramos vistos caminhando para o trabalho na lavoura, onde ficávamos ajudando o papai até que o sol ameaçasse se por no horizonte.

De volta em casa, já de noitinha, o tempo era dedicado à lição de casa.

Após o jantar que a mamãe preparava no velho fogão a lenha, meu irmão e eu ainda encontrávamos energia para brincar um pouco à luz de lampião. Com o tempo, nossa casa ganhou o benefício da energia elétrica. E com ela, veio a TV, aquele monstrengo de botões engraçados e imagem preta e branca que fazia a sala da velha casa azular depois da janta, prendendo a atenção do papai e a mamãe, fosse ao telejornal ou nas novelas.

Como dormíamos cedo naquela época! Íamos pra cama bem antes do horário em que hoje a moçada sai pra balada.

Entretanto, como já naquela época eu tinha bem pouco sono, adorava contemplar a noite estrelada. Gostava de abrir a janela e ficar ouvindo aqueles ruídos típicos da noite no campo. Grilos, sapos... A noite no campo tinha sons mágicos. E o céu, sempre lindo.

Mas tinha algo que me tomava os pensamentos de maneira incomum. Da janela do quarto era possível avistar ao longe os carros que passavam pela rodovia. Rodovia da qual hoje sei o nome, sei a quais cidades conduz etc. Mas que naquela época dourada era uma completa incógnita pra mim.

Lembro-me apenas de ficar contemplando os faróis e que iam e vinham e deixar a minha imaginação voar. Perdia-me em questões como: Quem estará dentro daquele carro? Como e onde vive? Quais são seus sonhos, seus gostos, suas alegrias e tristezas? Será uma pessoa feliz? Para onde estará indo? Movido por quais razões corta a rodovia a essa hora da noite? Será um homem, um pai de família? Terá filhos? Uma esposa? Ou será toda uma família viajando feliz para algum passeio agradável? Será que viajam cantando, ou conversando sobre algum assunto de família?

Eu podia passar horas tecendo conjecturas a respeito daquelas pessoas que para mim não passavam de anônimos. Pessoas que jamais imaginariam que a quilômetros da rodovia um menino estivesse pendurado na janela velha de uma tapera contemplando a noite e observando o movimento dos carros na pista. Pessoas que viveram cinqüenta, setenta anos, morreram e nunca souberam da minha existência. Pessoas das quais eu jamais verei os rostos ou ouvirei as vozes, ainda que eu viva cinqüenta ou setenta anos.

Ainda hoje, guardo em mim questionamentos semelhantes ao daquele menino da fazenda.

Andando pela cidade, esbarrando com um sem número de pessoas, cada uma com sua urgência, cada uma com seus milhares de motivos para não se relacionarem comigo, às vezes fico a pensar quem são, como vivem, o que pensam e sentem circulando anônimos pela cidade, tão mais próximos de mim que os passageiros dos carros na rodovia da minha infância.

Muitos deles cruzam comigo nas calçadas ou nas ruas inúmeras vezes. No entanto eu nunca soube seus nomes, seus sonhos, suas tristezas ou alegrias, seu time do coração...

Tampouco eles sabem de mim, que eu sou um menino crescido na roça, contemplando carpindo mato e contemplando estrelas. Um menino com medo do bambu gigante, que nunca mais provou uma laranja ribeiroa.

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