quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Medo

    Recentemente - há coisa de pouco mais de um ano e meio - descobri dentro de mim um monstro mais inquietantemente assustador do que qualquer outro que eu já tenha enfrentado nesse meio século de vida: o medo.
    Você me perguntará: mas, Ronaldo, em cinquenta anos de vida você nunca tinha experimentado o medo? Terá você vivido esse tempo todo como um oásis de destemor, uma ilha de coragem incorruptível?
    Desde já, afirmo: não. Em toda a existência até aqui, sempre lidei com diversas facetas do medo, tal qual (creio eu) todo ser encarnado na terra. Desde os medos mais inusitados da adolescência, como o pavor que eu tinha de ficar calvo ou de não ter barba, até aqueles que eu reputo como presentes em todo coração e toda mente pulsante sobre a face da Terra: o medo de perder minha mãe, o medo de não conseguir fazer face às despesas materiais para sobreviver com dignidade, etc.
    Contudo, o medo que eu assustadoramente encontrei agora dentro de mim, é de alguma sorte diferente. Ele parece ser um agrupamento de uma série de medos, mais ou menos explicáveis, mais ou menos justificáveis.
    Por vezes, acordo no meio da madrugada. Na verdade, isso sempre me aconteceu. Desde muito jovem meu sono sempre foi repicado, entremeado de despertamentos repetidos. Às vezes um, às vezes dois ou mais, dependendo de fatores que eu jamais identifiquei, apenas atribuindo ao imponderável. Esse fenômeno dos despertamentos no meio da noite ganharam agora um ingrediente novo. Se mais jovem eu simplesmente ia ao banheiro e depois corria a tomar um copo d'água, hoje despertar me paralisa em pensamentos intrusivos, frequentemente ligados a medos: da solidão, da velhice, de enfermidades, de incapacidade financeira etc.
    Nesse cenário, custo a reestabelecer o sono, lidando com uma mente incontrolável. Não raro, surgem manifestações físicas igualmente perturbadoras e incontroláveis: tremores, sudorese, cólicas, tontura, dores que parecem brotar subitamente em órgãos do corpo, sobretudo na coluna e nos rins.
    De minha já longa e consistente convivência com os postulados espíritas, procuro haurir equilíbrio e racionalidade - como é patente nas obras básicas da Doutrina  - para reverter o quadro. Tento ler o Evangelho, elevar uma prece, manipular meu padrão mental, buscando sintonias espirituais de espíritos de luz que me tragam notícias elevadas dos planos divinos. Às vezes funciona. Outras tantas vezes, nem isso.
    É então que entro numa espécie de prostração moral, que é o sentimento de alguém que sempre foi lúcido e absolutamente corajoso diante dos desafios da vida e que agora se sente um menino acuado.
    Prestes a completar cinquenta e um anos de idade, diagnostico-me a mim mesmo como um homem que fracassou em praticamente todas as empreitadas que assumiu.
    Comecei a vida, muito pequeno ainda, com a obsessão de me tornar padre católico. Moldei toda a minha adolescência impregnado por essa ideia. A ponto de dar as costas, por exemplo, a todas as possibilidades de paqueras e namoros da juventude, em virtude da seriedade da exigência de celibato imposta ao cargo pretendido. Decidi que não queria me envolver com nenhuma das garotas da minha juventude, sob pena de partir para o seminário com o coração decidido.
    Aos dezessete anos, fui admitido ao seminário. Primeiro pela minha diocese, depois, migrando para a Ordem Franciscana, onde em 1997, já cheio de conflitos internos, professei votos e me tornei frei em estágio inicial.
    Não demorou muito para que eu me sentisse vazio, doutrinariamente insatisfeito e afetivamente perdido, querendo namorar, beijar, ter uma vida sexual. Desejos ardentes me consumiam diante das belas mulheres que povoavam meu mundo católico. Ao mesmo tempo, me tornei um feroz questionador das doutrinas católicas, amarradas por dogmas inquestionáveis e que me soavam - muitos - irracionais.
    Enamorei-me de uma mulher quinze anos mais velha que eu, separada da primeira união e viúva do segundo companheiro. E o que muitos classificaram como um desastre, pra mim foi uma luz no fim do túnel, à medida em que catapultou o rompimento dos votos franciscanos e a volta para a vida civil.
    Desde então, a montanha russa da vida não me proporcionou sequer um minuto sem sobressaltos. Descobri-me um homem carinhoso, romântico, sexualmente sedento - não obstante inexperiente até os vinte e três anos de idade.
    O relacionamento que me tirou da vida franciscana teve vida curta, por razões que não necessitam ser mencionadas.
    Depois dele, vivi o que, na vida de um ex seminarista romântico e tolo, parecia um sonho. Apaixonei-me desgraçadamente por uma linda jovem a quem me dediquei como um cão. Essa com idade próxima à minha, porém com uma considerável experiência em relacionamentos. E foi ela que me desferiu o golpe mais duro e imprevisível: trocou-me por um rapaz muito mais atraente e, para ficar com ele, colocou fim à gravidez do nosso filho que ela carregava no ventre. O traço ainda mais cruel foi ela ter me confessado tamanho desatino num Dia dos Pais.
    Seguiram-se três anos de profunda depressão, de absoluta descrença nas relações. Comecei a vencer essa fase quando, concomitantemente, conheci uma mulher digna, bela, carinhosa e também descobri a Doutrina Espírita.
    O relacionamento com essa mulher cheia de predicados eu mesmo destruí por minha imaturidade e insegurança.
    A minha relação com a Doutrina Espírita, essa sim, segue norteando minha vida, fundamentando minhas mais sólidas convicções, confortando-me diante de revezes sucessivos, como a dura partida de minha amada mãe para a dimensão espiritual. Ainda que minha permanência no movimento espírita também tenha passado por turbulências e algumas reviravoltas.
    Afetivamente, venho vindo de desastre em desastre. às vezes magoando e ferindo, outras vezes sendo ferido e magoado. Até aí, nada de surpreendente.
    O que incomoda, de fato, é que nos últimos anos, de certa forma desisti de amar e ser amado. Crente de que sou um sujeito desinteressante no que diz respeito às expectativas externadas pelas mulheres dos dias atuais, afastei-me completamente da ideia de conseguir significar alguma coisa na vida de alguém.
    Entreguei-me a uma relação de amor e ódio com a senhora chamada Solidão. Cultivei-a nos últimos anos vivendo sozinho, ao mesmo tempo em que me apavoro em ver os anos passando e eu absolutamente incompetente no campo afetivo.
    Tendo passado recentemente por problemas de saúde que, inclusive me obrigaram a uma cirurgia, o outro medo permanente é o de envelhecer, além solitário, sem saúde física.
    Para finalizar esse texto, que já começa a ficar enfadonho, revelo o enredo do grande medo que me toma de assalto bem no meio da noite e bem no meio da vida: o medo de ter que enfrentar tudo o que não fui capaz de realizar.
    Às portas dos cinquenta e um anos de idade, não tive competência para constituir família, tampouco para estruturar uma vida financeira que me dê qualquer segurança. Erigi dentro de mim mesmo o espectro de um homem solitário, em certa medida anti-social, descrente do amor.
    Tem dias que simplesmente me sinto como um autômato que levanta de manhã, corre disciplinadamente atrás de dinheiro para sobreviver e fica assistindo os dias se esvaírem, sem perspectivas maiores ou anseios relevantes.
    Somado a isso, uma percepção muito viva de que sou absolutamente irrelevante para as pessoas que me cercam. A ideia de que eu estar aqui ou não estar não faz a menor diferença nas suas vidas.
    Talvez seja esse o pano de fundo maior dos meus medos: eu jamais ter feito a diferença na vida de alguém de fato.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Angélica

 Reencontrei Angélica.

Não de verdade, não de carne e osso.

Reencontrei sua foto.


Seus lábios carnudos

trouxeram à tona

a memória de um beijo

roubado no banco do carro

na penumbra de uma noite louca.


Seu olhar lascivo

parecia olhar-me diretamente

pedindo o amor

que nem sei por qual motivo

jamais se concretizou.


Fui correndo procurá-la

numa rede social.

Encontrei-a casada

com ares de felicidade.


Desisti de mais um hipotético amor.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

MORREREMOS

Tudo morre.
Todos morrem.
Estupidamente.
Inapelavelmente.

Com planos ou sem eles
morre-se, inexoravelmente.
Com destino ou a esmo
morre-se abruptamente.

Morrerei eu, morrerás tu.
Morreremos nós sem piedade.
Morreremos de mentira ou de verdade.
Anônimos ou celebridades, morreremos.

Não há indivíduo que não desça ao túmulo
ou transforme-se um punhado de cinzas.
Todos teremos nosso último suspiro.
Todos vitrificaremos o olhar um dia.

Um infarto, um AVC, um câncer, o diabetes.
Acidente de carro, coice de mula, queda de escada.
Atropelamento, incêndio, enchente, frio ou calor extremo.
Centenas de pretextos: morte certa.

Ficarão nossos bens, o cão de estimação,
aquele cortador de unha predileto.
Ficarão histórias, anedotas, vexames,
dívidas, vinhos, afetos... Ficarão.

Durante duas, talvez três semanas
ainda seremos assunto na barbearia.
Numa roda de conversa dos enfermeiros da UTI
provavelmente por alguns dias.

Por um ou dois anos, porta-retratos cafonas
sobreviverão empoeirando sobre um móvel da sala.
Familiares olharão circunspectos para nossos sorrisos extintos.
Nos mencionarão com distinção no Dia dos Pais, das Mães, no Natal
enquanto alguém assume nosso lugar à mesa do almoço.

Meia década depois, casualmente, um sobrinho
encontrar-nos-á ao folhear um álbum amarelado
esquecido numa gaveta da cômoda, entre lenços sem uso,
ou numa coleção de fotos de rede social.
"Mamãe, quem era este(a)?", perguntará.

Neste momento a morte não será mais
uma coisa aparentemente adiável ou reversível.
Teremos morrido definitivamente.
Afinal, sequer memória de meia dúzia seremos mais.

Ponto final. Absolutamente final!!

terça-feira, 10 de setembro de 2024

ENTRE O RISO E O CHORO

 Entre o riso e o choro

cabe todo o universo.

Cabem cinquenta mil tons

de emoções, gozos e dores.


Entre o riso e o choro

cabe a ternura do berço;

cabe a angústia do esquife.


Entre o riso e o choro

cabem as acnes do adolescente;

cabem as rugas do idoso.


Entre o riso e o choro

cabe a festa das núpcias;

cabe a audiência do divórcio.


Entre o riso e o choro

cabem os vigorosos goles da cachaça;

cabem os amargos remédios da cirrose.


Entre o riso e o choro

cabem os amorosos conselhos dos pais;

cabem as inconsequências da teimosia dos filhos.


Entre o riso e o choro

cabem os abraços dos amigos;

cabem as porradas dos inimigos.


Entre o riso e o choro

cabem os amores aconchegantes e sóbrios;

cabem as aventuras tórridas e loucas.


Entre o riso e o choro

cabem as orientações do professor;

cabem as broncas homéricas do chefe.


Entre o riso e o choro

cabem todas as nossas incoerências;

cabem todas as nossas lógicas.


Entre o riso e o choro

cabem as noites de farra;

cabem os dias de luta.


Entre o riso e o choro

agem as mãos alvissareiras do obstetra;

agem as mãos funestas do legista.


Entre o riso e o choro

cabe a meiguice da prece;

cabe a aspereza do palavrão.


Entre o riso e o choro

cabe o enlevo do beijo;

cabe a secura do tapa.


Entre o riso e o choro

cabe a primavera de um "eu te amo";

cabe o outono de um "desapareça da minha frente".


Entre o riso e o choro

cabem os sinos da fé contrita;

cabe a inflexão do ateísmo declarado.


Entre o riso e o choro

cabem o lar e o boteco;

cabem a igreja e o meretrício;

cabem a ordem e a anarquia;

cabem o grito e o silêncio;

cabem a dor e o prazer;

cabem o tesão e a impotência.


Entre o riso e o choro

cabem o eterno e o finito;

cabem a sabedoria e a estupidez;

cabem a poesia e a prosa;

cabem o sagrado e o profano.


Enfim...

Entre o riso e o choro

cabe a esperança de TUDO,

tanto quanto o abismo do NADA.