segunda-feira, 5 de junho de 2023

Visita de domingo

 Sujeito que à minha porta bate,

envolto em andrajos encardidos.

Peito arfante encharcado de esperança.

Pele ressequida pelo sol inclemente.


No estômago vazio, a acidez da expectativa.

Acumula horas (talvez dias) de funda fome.

Pernas vacilantes, ombros pensos, boca seca.

Diante dos meus muros, apequenado em sua miséria,

aguarda que uma voz suave surja do interfone.


Adiando afazeres frugais de um domingo outonal,

examino o monitor, retiro o fone do gancho,

ensaiando, para cada possível solicitação,

uma resposta impessoal, fria e repelente.


"Senhor, teria algo pra eu comer?"

"Senhor, um pão amanhecido, que seja?"

"Senhor, tem recicláveis?"

"Senhor, um copo d'água, por favor?"


Vergonhosa é a rapidez com que,

escudado pelo aparelho eletrônico, livro-me dele.

Livrando-me, assim, da melhor chance

que o domingo me ofereceu para ser bom e útil.


Muito mais que muros, cercas e câmeras,

O que nos separa é um "não sei quê".

Algo que minha palavra não explica,

que minha inteligência não examina,

que minha consciência insiste em anestesiar.


Enfim, ele se vai, um tanto mais abatido,

encontrar-se com o próximo interfone, sonhando piedade.


Mergulho novamente em meu domingo classe-média.

Quando, enfim, chega a noite, dirijo até o templo espírita.

Lá, vou pregar o Evangelho.

sábado, 11 de junho de 2022

Casa Vazia

O dia finda e um sol sem graça e exausto se deixa devorar pelo horizonte.

Honradamente retorno à casa que igualmente me devorará, não menos afadigado.
Giro a chave da porta, repetindo o gesto autômato de todas as tardes.
Adentro respeitosamente o imóvel que deveria abrigar um lar, mas onde
desde alguns anos somente reside a minha solidão.
A sala reserva-me o não-beijo apaixonado da esposa.
Lá do fundo do quintal me vem o absurdo silêncio da não-voz
dos filhos amados chamando de papai.
Seus não-abraços poupam-me – de uma forma que eu não desejaria –
os ossos já envelhecendo e as carnes, cansadas da lida do dia.
Olho em derredor. Tudo inalterado. Tudo exatamente disposto
tal como eu deixara pela manhã ao sair. Nenhuma intervenção,
sequer um objeto arredado do lugar onde foi posto por mim há séculos.
Sinal inequívoco de que absolutamente ninguém mexe na minha casa
nem na minha vida desde um tempo que nem consigo mais mensurar.
Atiro-me ao sofá desconfortável. No braço do móvel, o controle remoto da TV
se insinua para mim, como última chance de interação no deserto cáustico que
secou-me o coração e frequentemente molha-me o rosto.
Emprego esforço íntimo para não recorrer a ele, enquanto meu pensamento
realiza a pergunta tão reincidente: “Como, por Deus, cheguei aqui?”
Emerge à memória um sorriso apaixonante, um beijo quente,
um sexo vigoroso que, no passado, faziam-me sonhar uma família.
Uma mão que enrugasse pouco a pouco com os dedos entrelaçados aos meus,
nos intervalos em que construiríamos, tijolo a tijolo, uma vida em comum,
plena dos acertos e desacertos de todos os amantes numa longa jornada.
Rendo-me ao controle remoto como para refugiar a mente
num circo que dissipe as lembranças.
Em uma fração de segundos, a tela mágica começa a exibir personagens
que conversam entre si, ignorando dolorosamente a minha condição.
O cérebro abstrai e nem me dou conta de que vou percorrendo as teclas
à procura de um não-sei-que, sem objetivo ou critério algum.
Entediado, dou as costas à tv, castigando-a com a mesma punição de que sou vítima:
a de falar às paredes imaginando que tenho alguma importância ou utilidade, ao menos.
Decido-me a iniciar o ritual: chuveiro, refeição, cama. E esperar mais um dia igual a tantos,
nessa rotina insana à qual me condenei por um veredito impronunciado.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Uma prova chamada solidão

Geme minh'alma desde há muito

premida , torturada e abusada

em todas as suas dobras e desdobras

pelo mais temível dos algozes: a solidão.


Em vão vasculho memórias -

até mesmo de vidas outrora vividas -

que revelem tão cruel crime possa eu ter perpetrado

a ponto de, na infausta hora presente, ser condenado

ao suplício do não-amar e não ser querido.


Com que habilidade terei eu me doutorado,

nas encarnações pretéritas,

na controversa arte de desperdiçar amigos,

tanto quanto na incompetência para cultivar amores?


Dia após dia, esforço-me por aprender a lidar

com esse maldito silêncio em casa.

Silêncio de não ouvir esposa dizendo "meu bem"

nem crianças vivazes gritando "papai!"


Sejam quentes, frios ou chuvosos os dias,

sigo vitimado pela sede brutal, jamais saciada

por sequer um afeto sincero.


Numa sinistra e extenuante rotina,

assisto calmamente meus dias se esvaírem,

e vou me resignando em ver minha carcaça envelhecer,

meus cabelos branquearem e a virilidade titubear.


Resta saber quanto será a duração desta pena.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Quem sabe?

Cabe tanta coisa num "quem sabe?". Cabe a dúvida eterna de um possível amor; a incerta e sempre adiada visita a um velho amigo; cabe o sonho de uma ou dez graduações, indo desde a agronomia até psicologia; cabe a expectativa de um novo emprego; o desejo de mais um filho ou filha; cabe até a opção pela solidão.
Um "quem sabe?" é uma espécie de reticência eterna, pulsante e covarde. É a sombra do possível que se arrasta atrás do ser curvado e melancólico a caminhar pelo vazio da casa que, no fundo, é a expressão tosca do vazio do próprio ser, escravizado pelo martelar dos segundos implacáveis no relógio empoeirado suspenso na parede.
Um "quem sabe?" é a voz titubeante e débil da não-decisão. É a recusa a se posicionar diante da vida. Vida que não suporta muros para se sentar em cima.
Um "quem sabe?" é a covardia do homem. É o grito de sua alma incapaz de protagonizar a própria vida, preferindo o estúpido lugar de coadjuvante na história alheia.