quarta-feira, 18 de setembro de 2024

MORREREMOS

Tudo morre.
Todos morrem.
Estupidamente.
Inapelavelmente.

Com planos ou sem eles
morre-se, inexoravelmente.
Com destino ou a esmo
morre-se abruptamente.

Morrerei eu, morrerás tu.
Morreremos nós sem piedade.
Morreremos de mentira ou de verdade.
Anônimos ou celebridades, morreremos.

Não há indivíduo que não desça ao túmulo
ou transforme-se um punhado de cinzas.
Todos teremos nosso último suspiro.
Todos vitrificaremos o olhar um dia.

Um infarto, um AVC, um câncer, o diabetes.
Acidente de carro, coice de mula, queda de escada.
Atropelamento, incêndio, enchente, frio ou calor extremo.
Centenas de pretextos: morte certa.

Ficarão nossos bens, o cão de estimação,
aquele cortador de unha predileto.
Ficarão histórias, anedotas, vexames,
dívidas, vinhos, afetos... Ficarão.

Durante duas, talvez três semanas
ainda seremos assunto na barbearia.
Numa roda de conversa dos enfermeiros da UTI
provavelmente por alguns dias.

Por um ou dois anos, porta-retratos cafonas
sobreviverão empoeirando sobre um móvel da sala.
Familiares olharão circunspectos para nossos sorrisos extintos.
Nos mencionarão com distinção no Dia dos Pais, das Mães, no Natal
enquanto alguém assume nosso lugar à mesa do almoço.

Meia década depois, casualmente, um sobrinho
encontrar-nos-á ao folhear um álbum amarelado
esquecido numa gaveta da cômoda, entre lenços sem uso,
ou numa coleção de fotos de rede social.
"Mamãe, quem era este(a)?", perguntará.

Neste momento a morte não será mais
uma coisa aparentemente adiável ou reversível.
Teremos morrido definitivamente.
Afinal, sequer memória de meia dúzia seremos mais.

Ponto final. Absolutamente final!!

terça-feira, 10 de setembro de 2024

ENTRE O RISO E O CHORO

 Entre o riso e o choro

cabe todo o universo.

Cabem cinquenta mil tons

de emoções, gozos e dores.


Entre o riso e o choro

cabe a ternura do berço;

cabe a angústia do esquife.


Entre o riso e o choro

cabem as acnes do adolescente;

cabem as rugas do idoso.


Entre o riso e o choro

cabe a festa das núpcias;

cabe a audiência do divórcio.


Entre o riso e o choro

cabem os vigorosos goles da cachaça;

cabem os amargos remédios da cirrose.


Entre o riso e o choro

cabem os amorosos conselhos dos pais;

cabem as inconsequências da teimosia dos filhos.


Entre o riso e o choro

cabem os abraços dos amigos;

cabem as porradas dos inimigos.


Entre o riso e o choro

cabem os amores aconchegantes e sóbrios;

cabem as aventuras tórridas e loucas.


Entre o riso e o choro

cabem as orientações do professor;

cabem as broncas homéricas do chefe.


Entre o riso e o choro

cabem todas as nossas incoerências;

cabem todas as nossas lógicas.


Entre o riso e o choro

cabem as noites de farra;

cabem os dias de luta.


Entre o riso e o choro

agem as mãos alvissareiras do obstetra;

agem as mãos funestas do legista.


Entre o riso e o choro

cabe a meiguice da prece;

cabe a aspereza do palavrão.


Entre o riso e o choro

cabe o enlevo do beijo;

cabe a secura do tapa.


Entre o riso e o choro

cabe a primavera de um "eu te amo";

cabe o outono de um "desapareça da minha frente".


Entre o riso e o choro

cabem os sinos da fé contrita;

cabe a inflexão do ateísmo declarado.


Entre o riso e o choro

cabem o lar e o boteco;

cabem a igreja e o meretrício;

cabem a ordem e a anarquia;

cabem o grito e o silêncio;

cabem a dor e o prazer;

cabem o tesão e a impotência.


Entre o riso e o choro

cabem o eterno e o finito;

cabem a sabedoria e a estupidez;

cabem a poesia e a prosa;

cabem o sagrado e o profano.


Enfim...

Entre o riso e o choro

cabe a esperança de TUDO,

tanto quanto o abismo do NADA.



segunda-feira, 5 de junho de 2023

Visita de domingo

 Sujeito que à minha porta bate,

envolto em andrajos encardidos.

Peito arfante encharcado de esperança.

Pele ressequida pelo sol inclemente.


No estômago vazio, a acidez da expectativa.

Acumula horas (talvez dias) de funda fome.

Pernas vacilantes, ombros pensos, boca seca.

Diante dos meus muros, apequenado em sua miséria,

aguarda que uma voz suave surja do interfone.


Adiando afazeres frugais de um domingo outonal,

examino o monitor, retiro o fone do gancho,

ensaiando, para cada possível solicitação,

uma resposta impessoal, fria e repelente.


"Senhor, teria algo pra eu comer?"

"Senhor, um pão amanhecido, que seja?"

"Senhor, tem recicláveis?"

"Senhor, um copo d'água, por favor?"


Vergonhosa é a rapidez com que,

escudado pelo aparelho eletrônico, livro-me dele.

Livrando-me, assim, da melhor chance

que o domingo me ofereceu para ser bom e útil.


Muito mais que muros, cercas e câmeras,

O que nos separa é um "não sei quê".

Algo que minha palavra não explica,

que minha inteligência não examina,

que minha consciência insiste em anestesiar.


Enfim, ele se vai, um tanto mais abatido,

encontrar-se com o próximo interfone, sonhando piedade.


Mergulho novamente em meu domingo classe-média.

Quando, enfim, chega a noite, dirijo até o templo espírita.

Lá, vou pregar o Evangelho.

sábado, 11 de junho de 2022

Casa Vazia

O dia finda e um sol sem graça e exausto se deixa devorar pelo horizonte.

Honradamente retorno à casa que igualmente me devorará, não menos afadigado.
Giro a chave da porta, repetindo o gesto autômato de todas as tardes.
Adentro respeitosamente o imóvel que deveria abrigar um lar, mas onde
desde alguns anos somente reside a minha solidão.
A sala reserva-me o não-beijo apaixonado da esposa.
Lá do fundo do quintal me vem o absurdo silêncio da não-voz
dos filhos amados chamando de papai.
Seus não-abraços poupam-me – de uma forma que eu não desejaria –
os ossos já envelhecendo e as carnes, cansadas da lida do dia.
Olho em derredor. Tudo inalterado. Tudo exatamente disposto
tal como eu deixara pela manhã ao sair. Nenhuma intervenção,
sequer um objeto arredado do lugar onde foi posto por mim há séculos.
Sinal inequívoco de que absolutamente ninguém mexe na minha casa
nem na minha vida desde um tempo que nem consigo mais mensurar.
Atiro-me ao sofá desconfortável. No braço do móvel, o controle remoto da TV
se insinua para mim, como última chance de interação no deserto cáustico que
secou-me o coração e frequentemente molha-me o rosto.
Emprego esforço íntimo para não recorrer a ele, enquanto meu pensamento
realiza a pergunta tão reincidente: “Como, por Deus, cheguei aqui?”
Emerge à memória um sorriso apaixonante, um beijo quente,
um sexo vigoroso que, no passado, faziam-me sonhar uma família.
Uma mão que enrugasse pouco a pouco com os dedos entrelaçados aos meus,
nos intervalos em que construiríamos, tijolo a tijolo, uma vida em comum,
plena dos acertos e desacertos de todos os amantes numa longa jornada.
Rendo-me ao controle remoto como para refugiar a mente
num circo que dissipe as lembranças.
Em uma fração de segundos, a tela mágica começa a exibir personagens
que conversam entre si, ignorando dolorosamente a minha condição.
O cérebro abstrai e nem me dou conta de que vou percorrendo as teclas
à procura de um não-sei-que, sem objetivo ou critério algum.
Entediado, dou as costas à tv, castigando-a com a mesma punição de que sou vítima:
a de falar às paredes imaginando que tenho alguma importância ou utilidade, ao menos.
Decido-me a iniciar o ritual: chuveiro, refeição, cama. E esperar mais um dia igual a tantos,
nessa rotina insana à qual me condenei por um veredito impronunciado.