Anteontem, minha mãe veio me narrar uma conversa que teve com uma amiga. O tema, religião. Numa curta definição, a sua interlocutora, católica fervorosíssima, conceituou: “Espiritismo é coisa do demônio!”.
Sabedora de meu extremo interesse por assuntos religiosos, narrou-me todo o diálogo que travou com a inquisidora de Kardec com o habitual interesse de captar cada mínima reação minha. Afinal, não é qualquer mãe que tem o privilégio de ter em casa um ex-frade franciscano, antes candidato à carreira eclesiástica agora convertido em kardecista convicto e atuante.
Diga-se de passagem, que é uma praxe nos ambientes onde convivo. Sempre que surge o tema religioso, seja para elogiar ou depreciar esta ou aquela seita ou doutrina, imediatamente os olhos em derredor se voltam para mim, buscando-me como uma referência de conceito. Devo confessar que isso me afaga um pouco o ego, fazendo-me sentir uma espécie de formador de opinião.
Diante da narrativa de minha mãe, calei-me, contido. Para seu descontentamento, infelizmente. Afinal, as pessoas sempre esperam ver um homem reagir revoltado quando se ataca veementemente a sua crença. Minha velha mãezinha não foge à regra.
Hoje, três dias depois de ela ter me contado o episódio, depois de ter refletido um pouco, achei interessante postar um texto a respeito.
Lembro-me, agora, de um outro comentário, também de uma amiga da mamãe – esta, Testemunha de Jeová -, dentro de nossa casa. Ela teria dito, segundo a narrativa da mamãe: “Espírita não serve pra conviver comigo!”. A memória de minha reação interior de então, me faz crer que evoluí no sentido de ouvir disparates. Naquela circunstância, assim que minha mãe contou-me o fato, minha primeira reação, silenciosa foi a de pensar: “Pena eu não estar por perto pra dizer: ‘Ora, Dona Inácia, como a senhora sabe, sou espírita. E de modo algum quero que se sinta obrigada ao desprazer de suportar a minha presença tão indesejável. De modo que, como eu moro aqui, seria justo que a senhora saísse. Afinal, como diz o velho ditado, a porta da rua é serventia da casa’.” Claro que esse pensamento foi um relâmpago na minha mente, pois a educação que meus pais me deram e o respeito que nutro pelos mais velhos e pelos que têm outra crença jamais me permitiria tal ousadia.
Voltemos à frase do início do texto: “Espiritismo é coisa do demônio!”. Considero essa uma frase clássica, hoje
Há tanto o que se comentar a respeito disso, que perco-me na organização da argumentação. Apenas vou começar explicando porque não retruquei nem revoltei-me. Simples: essa frase clássica de atribuir às artimanhas do “tinhoso” toda a doutrina dos espíritos, e toda a obra de amor e caridade que delas têm brotado desde 1857, normalmente sai da boca dos ignorantes. E não estou usando a palavra “ignorantes” na conotação vulgar que se usa por aí, querendo desclassificar pejorativamente o indivíduo.
Quando digo que esse conceito é típico dos ignorantes, estou me referindo àqueles que falam sem conhecimento de causa, que de fato ignoram o que estão julgando, por jamais terem lido uma linha sequer das obras da codificação ou que nunca botaram os pés numa casa espírita para testemunhar a imensa obra de amor evangélico que move a engrenagem espiritista. A mesma ignorância de que poderiam me acusar se eu fosse aqui falar contra os transgênicos ou as pesquisas com células-tronco, sem jamais ter me aprofundado sobre qualquer um desses assuntos. Pelo menos não mais que a leitura de alguns artigos de revistas e jornais ou algum conteúdo de internet.
Falar sem conhecimento absoluto de causa, por si só já desclassifica a opinião. Não dá margem nem ao debate.
Claro que também temos oportunidade de discutir seriamente a doutrina com pessoas que buscaram conhecê-la, pesquisaram-na e a mesmo assim não a reconhecem como legítima. Esse tipo de debate é muito interessante e enriquecedor, porque nos inquieta e nos desafia. E sobretudo nos faz ter a humildade de saber que nem todos pensam como nós e nem por isso são condenáveis. Apenas enxergam a vida sob um prisma diferente e para elas não se aplica como verdade aquilo que para nós é razoável.
Ainda voltando ao argumento da amiga da minha mãe, creio que valha a pena explorar um pouco o tema.
Existem construções filosóficas e teológicas bastante extensas e complexas acerca do demônio, diabo, capeta, satã ou como queiram denominá-lo. Há inclusive, doutrinas divergentes sobre a figura satânica que aterroriza o mundo e rivaliza com Deus desde os primórdios. Não vou explorá-las aqui, tampouco discorrer longamente sobre cada uma delas, posto que isso não é um tratado, mas um artigo para reflexão menos elaborado.
Parece-me que a doutrina mais defendida entre as doutrinas cristãs – inclusive a Igreja Católica – é aquela segundo a qual o demônio teria sido criado por Deus na condição de um anjo.
Aqui cabe um parênteses para dizer que, para a Igreja, os anjos são seres criados à parte, nem deuses nem humanos, que intermediam as relações entre a divindade e a humanidade.
Segundo a doutrina vulgarmente conhecida como a “doutrina do anjo decaído”, não obstante Lúcifer gozasse de uma proximidade extraordinária com Deus, em determinado momento teria se rebelado contra Ele, por inveja, e se transformado numa criatura para sempre devotada ao mal. Um ser que vive peremptoriamente uma queda de braço com Deus. Nessa luta, o troféu é a alma do homem. Ou seja, as almas dos homens desde o início da existência da humanidade, onde estava satã na figura da serpente, prontinho para seduzir imediatamente o primeiro casal humano a habitar a Terra.
Concebe-se então que o demônio tenha um território circunscrito, a que as religiões denominam inferno, para onde ele arrasta - depois da morte - as almas dos homens e mulheres que seduziu
É óbvio que, dada a negativa da Igreja em reconhecer a reencarnação, o volume de almas que Deus cria incessantemente é gigantesco. Ou seja, supondo mesmo que uma parte pequena dessas almas acabe no inferno após a morte física, há que se contar com muitos caldeirões e uma quantidade razoável de demônios para ficar eternamente dedicada ao serviço de cozinhar essas almas. Também para isso a Igreja tem sua teoria: diz que Lúcifer não se retirou sozinho da presença de Deus, quando foi fundar o inferno, mas que teria levado uma horda substancialmente numerosa consigo. São seus asseclas. Impressiona é que, tendo se revoltado contra a Suma Bondade de Deus, esses demônios não tenham jamais se revoltado contra o seu líder em momento algum. Ou seja, revoltaram-se contra o banquete dos céus, mas aceitam as condições horrendas do inferno sem murmurar contra um líder perverso que os obriga ao trabalho sujo por toda a eternidade.
Essa definição do demônio provoca algumas reflexões:
A primeira delas diz respeito o retrocesso de um ser. Admitirmos que alguém que goza do mais alto escalão na hierarquia dos seres, alguém que atinge a ventura máxima de conviver face a face com o Criador possa sentir-se tentado a retroceder e abraçar o mal de modo tão definitivo é aterrador. Se um anjo não conseguiu viver sem cogitar o mal tendo sido criado como anjo e estando convivendo com Deus, quais são as esperanças de almas tão falhas quanto as nossas que sequer temos a investidura de anjos? Poderemos ainda ter a ilusão de que conseguiremos viver com Deus por toda a eternidade, se a cada milésimo de segundo uma idéia minimamente impura nos irrompe o pensamento e nos tira do prumo?
Lembro-me aqui de algumas das figuras mais ilustres da própria Igreja, que nos servem de modelos, elevados à categoria de Santos pelos imensos esforços de caridade a que se entregaram, pelas mortificações a que muitos deles se submeteram. Em muitas dessas biografias constam relatos de terríveis crises de fé, de árduas lutas para se manterem fiéis à inspiração divina.
Francisco de Assis, um dos maiores ícones da religiosidade da Igreja, já no leito de morte, disse aos seus seguidores: irmãos, é preciso começarmos, porque até agora pouco ou nada fizemos.
Se um anjo, na presença de Deus, digamos, não “se garantiu”, que luta inglória se revela essa.
Está perfeitamente claro que a doutrina de um Lúcifer decaído, que se tenha transformado no príncipe das trevas é errônea.
Assim como é loucura crer que possa haver um ser eternamente devotado ao mal, meticulosamente dedicado a se contrapor a Deus. Assim como é insano imaginar um Deus que gaste as suas energias e seu tempo “disputando” almas com essa criatura. Almas que Ele criou com um amor incomensurável e indizível e que Ele jamais entregaria à perdição, fossem quais fossem os seus delitos.
Nós somos de Deus, a Ele pertencemos e Sua misericórdia para com nossos delitos é infinitamente maior que todo o raciocínio que possamos esquadrinhar. Ele não nos criou para a perdição, mas para o progresso contínuo, somos fadados à perfeição e não há nada no Universo que desconstrua essa verdade. Ele nos concede sempre um novo dia e uma nova existência para abandonarmos os nossos maus hábitos e caminharmos em direção à Sua Luz.
Por fim, seguindo a lógica da amiga da minha mãe, nos veríamos obrigados a imaginar um demônio que, não bastasse as suas ocupações em recolher e punir as almas renegadas, se dedicasse a elaborar uma obra tão extensa e coesa no bem quanto a doutrina espírita, criando-a em suas mais profundas verdades sobre a caridade e a fé. E ainda conduzindo uma obra de tamanho vulto, que em inúmeras partes do planeta ocupa milhões de espíritos desencarnados. Todos, estariam sob a sua direção, sendo orientados há mais de cento e cinqüenta anos a pregar falsamente o amor, a paz e as virtudes entre os homens.
Definitivamente, creio firmemente que o Espiritismo, assim como as inúmeras, religiões não seja obra de nenhum demônio.